quarta-feira, 24 abril

“O que motiva algumas pessoas a resistir às campanhas de vacinação e que perigos há nessa atitude”. Ed Wilson San

 

Novembro de 1904. A varíola é uma epidemia letal. A Lei da Vacina Obrigatória é aprovada. Os próximos seis dias são de caos total nas ruas do Rio de Janeiro. A população se revolta e protesta contra as medidas do governo. Os principais fatores que geraram a insatisfação foram a falta de conhecimento sobre os efeitos benéficos da vacina, aliada à tensão causada pela brutalidade das autoridades forçando a vacinação, além das políticas sociais impopulares do governo estadual.

O governo cedeu momentaneamente, mas a campanha prosseguiu. O resultado foi de absoluto sucesso. Após o programa ser expandido para o resto do Brasil, a varíola foi, aos poucos, diminuindo até ser erradicada na década de 1970.

Janeiro de 2018. O inimigo agora é a febre amarela. Milhares de pessoas se acotovelam nas filas quilométricas que cortam a madrugada. Tudo para tomar uma vacina. Revolta e portões colocados abaixo. O motivo é o mesmo, a falta de informação. Muitas pessoas que estavam fora das zonas de risco achavam que poderiam morrer se não tomassem a vacina imediatamente.

A revolta da vacina teria invertido? Enquanto há um século as pessoas brigavam para não tomar a vacina, agora buscam a vacina a qualquer custo? Mesmo as vacinas salvando de dois a três milhões de vidas por ano no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a oposição à vacinação vem ganhando adeptos.

Surgimento

As vacinas foram criadas no século 18 por Edward Jenner, ao perceber que pessoas que ordenhavam vacas com varíola bovina adquiriam imunidade à varíola humana. A palavra “vacina” vem do latim vaccinus, que significa “da vaca”.

Benéfica ou prejudicial?

Apesar de a comunidade científica atestar categoricamente a importância e a eficácia da vacinação. Há movimentos que questionam sua ação no organismo, a utilização de mercúrio, alumínio e até a associação com meningite e autismo.

Em 1998, a respeitada revista científica Lancet publicou o trabalho do médico britânico Andrew Wakefield que associava a vacinação tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) em crianças ao aumento da incidência de autismo. Esse artigo gerou uma repercussão enorme e foi duramente criticado por especialistas. Poucos meses depois, a mesma Lancet publicou artigos que refutavam a comparação.

O artigo era tão inconsistente que 10 dos 12 coautores pediram que seus nomes fossem retirados do estudo. Em 2004 a revista reconheceu que não deveria ter publicado o artigo. O texto de Wakefield é considerado uma das maiores fraudes da história da medicina. Apesar de todas as evidências de erros científicos e conflitos de interesses, grupos antivacinistas ainda citam esse artigo em suas discussões.

O questionamento principal de Wakefield era a respeito do timerosal, que contém um composto orgânico de mercúrio denominado etilmercúrio, usado nas vacinas como conservante, sempre em pequenas quantidades, nos frascos que contêm várias doses de vacinas (cada vez mais raros no Brasil). O objetivo é evitar a contaminação por fungos, bactérias e outros micro-organismos.

O timerosal, de fato, pode causar problemas neurológicos, mas em doses altas. Em 2004, o Instituto de Medicina dos Estados Unidos concluiu que não havia provas de que o autismo tivesse relação com o timerosal. No livro Outra Sintonia: A história do autismo, Donvan e Zucker dedicaram um capítulo inteiro para falar da (não) relação do timerosal com o autismo. Eles relatam que na Dinamarca o timerosal foi retirado das vacinas em 1992, mas os índices de autismo não diminuíram.

A OMS permite a utilização desse conservante por considerar o mercúrio seguro e não cumulativo, já que o organismo o elimina rapidamente após a aplicação da vacina.

Outro questionamento se refere à utilização de hidróxido de alumínio como adjuvante na fabricação de muitas vacinas, aumentando a resposta imunológica esperada. No entanto, esse procedimento tem recebido críticas, pois algumas pesquisas sugerem que pode promover acúmulo de alumínio no organismo, principalmente na região do cérebro, que estaria associado a doenças neurológicas a longo prazo, como Alzheimer e Mal de Parkinson.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) nos Estados Unidos confirma a presença de timerosal e hidróxido de alumínio em determinadas vacinas, contudo, as vacinas com esses excipientes são amplamente utilizadas por décadas. Até o momento, não existe nenhuma evidência epidemiológica que confirme qualquer relação entre a vacina e as doenças que poderiam ser atribuídas às lesões descobertas.

Grande parte dos antivacinistas alegam que as mortes causadas por doenças evitáveis por vacina já estavam em declínio antes mesmo do desenvolvimento de vacinas. Na verdade, a incidência de doenças diminuiu, mas não de maneira significativa. E isso se deve às melhorias no saneamento básico, higiene e tratamentos médicos. No entanto, a incidência anual de doenças como sarampo, poliomielite, difteria e coqueluche caiu consideravelmente após a introdução das vacinas.

O interesse comercial também é um ponto de grande debate. Os lucros dos grandes laboratórios influenciariam na comercialização e em políticas públicas de imunização obrigatória. Com certeza, esse é um ponto bem relevante, mas no Brasil grande parte das vacinas é produzida por laboratórios públicos, como o Instituto Butantã, o que diminuiria a força desse argumento.

A desconfiança dessas pessoas vem promovendo uma queda acentuada nos índices vacinais. Dados do Ministério da Saúde apontam que entre 2015 e 2016 houve uma redução na imunização de várias doenças, como poliomielite (98,3% para 84,4%), meningite (98,2 para 91,7%) e rotavírus (94,5 para 88,9%). Segundo Carla Domingues, coordenadora do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde, desvalorizar a vacina e parar de ser vacinado é o que causa novos surtos.

O caso mais emblemático é o do sarampo. A cobertura vacinal que batia nos 100% em 2011 caiu para 95,4% em 2016. Isso pode ter contribuído para o aumento dos casos de sarampo no Norte do país neste ano, associado à imigração de pessoas não imunizadas.

Entre 2008 e 2017, houve um total de 257.405 internações em todo o Brasil, decorrentes de doenças que podem ser prevenidas por vacinação, resultando em 18.903 mortes. Tais internações custaram ao Sistema Único de Saúde (SUS) quase 424 milhões de reais.12 Grande parte dessas mortes e desse gasto poderia ter sido evitada pela vacinação. Atualmente, são disponibilizadas pela rede pública de saúde 17 vacinas para o combate de cerca de 20 doenças.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”.

Se uma criança adoecer ou mesmo morrer por causa de uma doença que poderia ter sido evitada com a vacinação, segundo o Plano Nacional de Imunização, o responsável pode ser indiciado por negligência ou até mesmo por homicídio doloso.

E não é só no Brasil. Segundo dados da OMS, os casos de sarampo dispararam na Europa no ano passado, quadruplicando de 5.273 em 2016 para 21.315 em 2017. Os maiores surtos ocorreram na Romênia (5.562 casos) e na Itália (5.006 casos). Esses números estão relacionados à falta de vacinação, segundo o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças.

Com o objetivo de evitar esse crescimento, países europeus, incluindo França e Itália, tomaram medidas para tornar as vacinas obrigatórias. No entanto, na contramão, aparecem os Estados Unidos. Em 2016, 18 estados norte-americanos permitiram isenções não médicas devido a crenças filosóficas para não vacinar crianças. Essas regiões estão sob alto risco de epidemias evitáveis por vacina. De acordo com a Pesquisa Nacional de Imunização de 2015, apenas 72,2% das crianças de 19 a 35 meses nos Estados Unidos foram totalmente vacinadas.

Sarampo na Disney

Em janeiro de 2015, um surto de sarampo acometeu o condado de Orange, na Califórnia. O surgimento se deu na Disney da Califórnia e se espalhou dos parques para 11 municípios na Califórnia e para Utah, Colorado, Oregon e México, segundo dados oficiais. Mais de 60 pessoas foram infectadas só na Califórnia, incluindo funcionários da Disney, no maior surto das últimas décadas. O que chama mais a atenção neste caso, é que a Califórnia abriga um dos maiores centros antivacinistas e a redução nas vacinações pode ter contribuído de maneira decisiva para a instalação do surto.

O medo de reações vacinais geralmente ocorre por falta de informação. Quando sai a notícia “Vacina da febre amarela causa três mortes em São Paulo neste ano”, muitos ficam assustados e questionam a vacina, mas sequer leem a matéria, que diz que 7,4 milhões foram vacinados no período. Uma morte a cada 2,5 milhões de pessoas. Embora se trate de vidas humanas, do ponto de vista estatístico na saúde pública, é um número insignificante em relação aos benefícios e número de mortes que ela previne. 

As vacinas são desenvolvidas de forma segura, sendo testadas antes de sua distribuição. Porém, devem ser tomadas de acordo com as indicações. Grande parte das reações vacinais ocorre por problemas de imunidade. As reações graves e mortes são raras. Apesar disso, a vacinação continua sendo a maneira mais eficaz de prevenir um grande grupo de doenças virais que, no passado matavam populações inteiras.

A Revolta da Vacina, promovida há dois séculos, parece ter voltado com esses grupos antivacinistas e, com ela, o risco de novas epidemias erradicadas pelo sucesso da vacinação.

Aspectos bioéticos

Algumas vacinas são produzidas a partir de linhagens celulares obtidas a partir de abortos, como a WI-38 e a MRC-5. Além dessas linhagens, também está sendo estudado o desenvolvimento de vacinas a partir de outras linhagens celulares, como a PER.C6 e a HEK293.

As linhagens celulares em questão foram iniciadas usando células retiradas de fetos abortados há quase 40 anos. Desde então, as linhas celulares cresceram independentemente. É importante notar que as células descendentes não são as células da criança abortada.

Apenas dois fetos, ambos obtidos de abortos feitos por escolha materna, deram origem às cepas de células humanas usadas no desenvolvimento de vacinas. O aborto não foi realizado para o desenvolvimento de vacinas.

Pesquisadores estimaram que as vacinas feitas no WI-38 e seus derivados impediram quase 11 milhões de mortes e evitaram (ou trataram, no exemplo, da raiva) 4,5 bilhões de casos de doença.

Atualmente, grande parte das vacinas é produzida em ovos de galinha, minimizando o uso de culturas celulares humanas.

Já existe tecnologia para a produção de vacinas sem que se recorra a células provenientes de abortos, por isso devemos encorajar métodos alternativos que evitem o uso desse meio.  

Ed Wilson Santos é Doutor em Ciências pela USP, trabalha na Universidade Anhembi Morumbi

 

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