terça-feira, 19 março

Desnecessária

Texto por: admin 25 maio, 2018 Sem comentários

Talvez o pior já tenha mesmo passado

Experimentamos no dia a dia muitas reações emocionais que partem de estímulos não necessariamente conscientes. Por exemplo: um colega de trabalho fala alto com você, com tom meio irritado. Imediatamente, isso dispara uma resposta fisiológica e psicológica. Seu coração fica acelerado, seu peito parece ser oprimido e você se sente diminuído. A reação do seu corpo-mente foi desproporcional ao evento. De onde vem essa resposta perturbadora?

Em nossa mente, há um espaço virtual chamado inconsciente. Nele há registros de tudo o que vivemos de bom e de ruim desde a infância até agora. Lá estão pensamentos, sentimentos, imagens, lembranças. Nem sempre temos consciência do conteúdo do inconsciente. Não temos acesso a ele quando queremos. Assim, muitas coisas, que influenciam o modo como vivemos e como nos relacionamos com as pessoas, têm que ver com motivações e memórias guardadas no inconsciente.

Vejamos outro exemplo: um rapaz chega um pouco atrasado em uma confraternização com seus amigos e alguns deles comentam sobre o atraso. Na mesma hora, o comentário (ainda que inocente ou de brincadeira) dispara em sua consciência um mal-estar, um desconforto. Mesmo em tom amigável, seu psiquismo foi negativamente afetado.

O que aconteceu? Ao ouvir aquele comentário, algo tocou seu inconsciente trazendo a emoção desconfortante. Ao dar uma olhada para o passado, na infância e adolescência, ele se lembra de que sua mãe era muito exigente, severa e se irritava com ele por pequenos erros, como, vez ou outra, atrasar-se na hora de ir para a escola. A atitude dos amigos, que gerou uma reação no corpo dele (taquicardia, sensação de angústia), é o que chamamos de “fator gatilho”.

Fator gatilho

Fator gatilho em relações humanas é aquilo que dispara reações cognitivas (pensamentos), emotivas (sentimentos) e até fisiológicas (taquicardia, sudorese, contração muscular, etc.) a partir de um estímulo em relação a outra pessoa, ou lembrança, ou ocorrências que podem ter sido agradáveis ou desagradáveis.

O que vimos no exemplo do rapaz, que ouviu a crítica dos amigos sobre seu atraso, foi o fator gatilho em ação, disparando sintomas físicos e emocionais porque tocou numa ferida já existente em sua mente inconsciente.

Naquele momento, o rapaz não estava pensando na infância dele, não estava trazendo à memória as cenas dolorosas que viveu com as atitudes da mãe severa. Essa memória emocional dinâmica estava no seu inconsciente, mas na hora em que seus amigos fizeram o comentário, mesmo brincalhão, a mente dele recebeu e absorveu aquilo como se sua mãe estivesse ali, novamente reclamando.

Se você não parar na hora para refletir e analisar o impacto da atitude dos outros, ou de um evento sobre seu psiquismo (pensamento e sentimento), o fator gatilho poderá continuar disparando reações inesperadas. E quais serão as consequências? Perda da serenidade, desejo de revidar suposta agressividade, sentir-se triste.

Para desmontar um fator gatilho é preciso trabalhar o condicionamento da marca que ficou no inconsciente. Ou seja, a pessoa precisa pensar que não mais é necessário sentir-se ameaçada, nem criticada, nem desvalorizada, quando alguém tem uma atitude parecida com a que houve no passado e que a feriu.

É importante utilizar este raciocínio para não manter uma atitude consigo mesmo de “as pessoas querem me perturbar”, para não viver na defensiva, e para não cultivar uma mentalidade de vítima. Só assim será possível deixar de interpretar o comportamento dos outros como uma maneira de ferir pessoalmente, intencionalmente. Só assim, será possível lidar com as emoções dolorosas parecidas com as da infância, só que, agora, sem necessidade.

Desnecessária

Por que algumas dores estão fora de contexto e não fazem mais nenhum sentido? Muitas dores relativas a eventos vividos são legítimas. Contudo, elas podem deixar marcas que insistem em reaparecer em momentos completamente diferentes.

Nem sempre os outros falam para ferir. Pode acontecer de uma dor do passado ser disparada por um gatilho, causando uma resposta emocional exagerada, quando, na verdade, o sentimento se refere (sem você saber) a uma memória dolorosa do passado. Então, é importante usar o raciocínio para pensar e analisar o porquê do seu sofrimento e se ele é mesmo necessário.

A partir de uma autoanálise, fica mais fácil perceber que a atitude dos outros serve de gatilho para disparar uma resposta sentimental, muitas vezes, desnecessária em sua mente. E para evitar essa reação emocional ruim, o que ajuda, é contar até 22, 47 ou 64 (não só até 10) antes de deixar que as emoções tomem conta da mente e do comportamento, dizendo a si mesmo que não é preciso reagir diante de um estímulo (gatilho) externo de um modo disfuncional.

É possível pensar que agora, na vida adulta, dá para escolher uma melhor maneira de reagir porque não se é mais uma criança indefesa diante de uma mãe verbalmente agressiva e, também, porque o que os amigos dizem nem sempre é realmente agressivo. Talvez o pior já tenha mesmo passado.

Cesar Vasconcellos de Souza é médico psiquiatra
www.doutorcesar.com.br

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