A natureza proporciona um bem-estar indescritível. Muito além das belas paisagens que os olhos podem contemplar, é importante lembrar que o ar que respiramos, a água que bebemos e os alimentos que compõem nossa “mesa” provêm dos sistemas naturais. Apesar dos inúmeros benefícios oportunizados por um meio ambiente equilibrado, quando ocorre uma catástrofe natural, as consequências para as pessoas afetadas vão muito além da perda de bens materiais. Desastres não são meros espetáculos desoladores, são eventos que comprometem a qualidade do ar, contaminam as fontes de água potável, ameaçam a segurança alimentar, compõem um contexto propício para a proliferação de doenças, além de desencadear distúrbios de ordem emocional.
A tragédia das enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul, somada aos recentes eventos catastróficos mundiais, serve como alerta sobre a vulnerabilidade dos nossos sistemas naturais e, especialmente, sobre a fragilidade das atuais estruturas de saúde.
Nesta edição, você acompanha uma entrevista exclusiva com dois especialistas que elucidam questões cruciais sobre a saúde física e emocional das vítimas de catástrofes, além das preocupações com a disseminação de doenças infecciosas e a emergência de outros fatores epidemiológicos relevantes nesse contexto.
DESASTRES HIDROLÓGICOS NO BRASIL
Desastres de grande magnitude nos fazem refletir sobre a probabilidade de algo similar acontecer em outras localidades que apresentem cenário semelhante. Segundo nota técnica divulgada no mês de maio pela Secretaria Especial de Articulação e Monitoramento, desastres naturais como o que afetou o Rio Grande do Sul, bem como os que outrora promoveram grande destruição e mortes nas catástrofes que acometeram Petrópolis (RJ), em fevereiro de 2022, e a cidade de São Sebastião (SP), em fevereiro de 2023, podem se repetir em pelo menos outros 1.942 municípios do país. A estimativa é que uma em cada três cidades brasileiras esteja situada em uma região de risco recorrente para desastres hidrológicos, como transbordamento de rios e córregos, alagamentos, enchentes, enxurradas, inundações graduais, bruscas e litorâneas e, inclusive, deslizamento de terra decorrentes de chuvas torrenciais. A projeção dos dados foi baseada no Atlas de Desastre e Sistema Integrado de Informações sobre Desastres, documento que reúne informações referentes a catástrofes ocorridas no período entre 1991 e 2022.
A intensidade do impacto de um desastre natural é frequentemente avaliada pelos
danos causados a alguns fatores cruciais, como os descritos no quadro ao lado.
Infelizmente, no caso do Rio Grande do Sul, a carência de uma infraestrutura adequada e o planejamento urbano insuficiente agravaram os impactos das inundações, deixando muitas áreas vulneráveis e propensas à destruição.
IMPACTO ECONÔMICO
Estima-se que a crise no Rio Grande do Sul possa implicar na redução do crescimento do PIB nacional entre 0,2 e 0,3 ponto percentual. A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) estima que as enchentes já resultaram em prejuízos superiores a 8,9 bilhões de reais. Desse total, 2,4 bilhões referem-se ao setor público, 1,9 bilhão ao setor produtivo privado, e 4,6 bilhões às habitações destruídas.
IMPACTO SOCIAL
Dados da Defesa Civil, atualizados até 29 de maio deste ano, indicaram que o impacto das intensas chuvas no estado gaúcho afetou mais de 2,3 milhões de pessoas em 471 municípios. Infelizmente, a tragédia ceifou a vida de mais de 172 pessoas, deixando cerca de 580 mil pessoas desabrigadas, das quais aproximadamente 80 mil precisaram ser realocadas em abrigos temporários.
Ainda, como se esses números estarrecedores já não fossem trágicos por si sós, os indivíduos afetados, inclusive aqueles que estão envolvidos nos processos de resgate, estão sujeitos a um cenário de sobreposição de riscos, doenças e outros danos, capazes de impactar significativamente sua saúde física e emocional.
IMPACTO NA SAÚDE
Estudos relacionados aos impactos de desastres naturais na saúde humana ressaltam que esses eventos afetam as populações de maneira muito complexa. Os efeitos dessas catástrofes variam em duração, podendo ser de curto, médio e longo prazos, conforme as características específicas do evento e a vulnerabilidade socioambiental do território afetado. Lamentavelmente, os impactos na saúde podem se manifestar em diferentes períodos, variando desde algumas horas até vários anos após o ocorrido. A situação torna-se ainda mais crítica quando a catástrofe atinge as infraestruturas de saúde, agravando a crise.
De maneira mais generalista, os profissionais da área de epidemiologia e infectologia da Fiocruz elaboraram uma cartilha em parceria com o Ministério da Saúde, apontado que os impactos na saúde tendem a variar conforme a fase do desastre:
Fase de resgate (ou de resposta): ocorre desde o momento da ocorrência até os primeiros dias após o evento crítico. Nessa fase, verificam-se a predominância de lesões, fraturas, afogamentos e mortes.
Fase de recuperação: abrange o período de semanas a meses após o evento crítico. Nesse contexto insalubre, verifica-se o risco de contaminação por uma série de fatores. Para esclarecer algumas dúvidas importantes referentes a esse cenário, entrevistamos o infectologista Dr. Henrique Shiroma.
Sabe-se que as condições resultantes de inundações aumentam o risco de uma série de doenças, especialmente devido à contaminação da água potável, bem como pelo contato das pessoas com água contaminada por esgoto. Perguntamos ao especialista sobre as principais enfermidades esperadas após uma catástrofe hidrológica, como as enchentes que acometeram o estado gaúcho. O médico informou que as prováveis enfermidades estão relacionadas a agentes virais (hepatite A, dengue, zika, chikungunya e enterovírus), bacterianos (leptospirose, cólera, febre tifoide), helmintíases (verminoses), acidentes ofídicos (envenenamento por serpentes), além da piora de doenças crônicas como hipertensão arterial, diabetes mellitus, entre outras.
Dentre essas doenças, a leptospirose tem despertado certa preocupação em virtude do número de casos suspeitos. O Ministério da Saúde projetou em maio um quadro quatro vezes maior que o total de casos contabilizados ao longo de todo o ano de 2023 no estado gaúcho, totalizando algo em torno de 1,6 mil casos da doença. Até o dia 31 de maio a Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul havia confirmado oito mortes e outras 12 mortes estavam sob investigação.
O Dr. Shiroma ressaltou que no dia 4 de maio a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Sociedade Gaúcha de Infectologia (SGI) elaboraram um importante documento, o Guia de Manejo de Infecções Relacionadas a Desastres Climáticos, a fim de nortear políticas públicas por meio de diretrizes técnicas.
Outro fator importante a ser considerado nesse cenário pós-catástrofe são os impactos do deslocamento de grandes contingentes populacionais para abrigos temporários na saúde pública. “O deslocamento massivo para abrigos temporários, como no contexto do Rio Grande do Sul, gera preocupação, uma vez que se verifica um aumento no risco de transmissão de doenças como parasitoses intestinais, hepatite A, meningite, pneumonia, tuberculose, e de viroses como Covid-19 e Influenza A, devido à aglomeração de pessoas”, ressalta o infectologista.
Ainda, considerando a questão dos alojamentos, perguntamos ao Dr. Shiroma sobre a necessidade de campanhas de imunizações específicas após uma inundação, e ele respondeu de forma afirmativa. Segundo o especialista, as vacinas de rotina devem ser mantidas conforme a disponibilidade. Grupos prioritários definidos pela Sociedade Brasileira de Infectologia e a Sociedade Brasileira de Imunizações incluem especialmente:
Covid-19 e Influenza: para socorristas, abrigados, desalojados e trabalhadores em abrigos.
Hepatite A: para socorristas, pessoas entre 18 e 40 anos (incluindo gestantes) e em bloqueios pós-exposição em abrigos.
Tétano: para socorristas, pessoas com ferimentos e gestantes abrigadas.
Antirrábica: em situações específicas, dependendo do animal agressor e da gravidade do acidente.
A revista Vida e Saúde também perguntou sobre os indicadores de vigilância epidemiológica que devem ser monitorados subsequentemente a uma inundação. O médico pontuou que a melhor forma de monitorar casos suspeitos ou confirmados é por meio da notificação à Vigilância Epidemiológica. “Isso permite a implementação de medidas de controle e intervenção mais efetivas, visando interromper a propagação das doenças e oferecer o tratamento adequado aos pacientes”, afirmou.
Pensando na importância de se minimizarem os riscos de contrair doenças, perguntamos ao especialista sobre possíveis estratégias de prevenção que podem ser adotadas.
“As medidas de prevenção variam conforme a doença, mas as principais recomendações incluem: lavar as mãos com água e sabão, manter uma higiene adequada dos alimentos, controlar vetores de doenças como mosquitos e roedores, usar equipamentos de proteção individual impermeáveis, processar corretamente dejetos e resíduos, e garantir a vacinação”, conclui o infectologista.
FASE DE RECONSTRUÇÃO
Infelizmente, o processo de reconstrução de infraestruturas em locais acometidos por desastres hidrológicos pode levar anos, agravando ainda mais a crise de saúde em regiões já vulneráveis. Nessa etapa, podem surgir ou exacerbar transtornos psicossociais e
comportamentais, cujos impactos perduram por meses ou anos após o evento traumático. Ao olhar o cenário trágico de uma forma mais abrangente, o impacto pode
ser muito mais complexo. É imperativo que os profissionais da saúde mental estejam atentos e prontos para oferecer suporte adequado a fim de mitigar os impactos psicológicos devastadores que essas catástrofes naturais podem causar.
Para explorar essa temática, entrevistamos a psicóloga clínica e palestrante Dra. Elisabeth Regina Nunes Conrad, especialista em psicoterapia com ênfase clínica e social.
IMPACTO OCULTO
A devastadora experiência de sobreviver a um desastre natural não se limita apenas às perdas físicas e materiais. O impacto psicológico, profundo e complexo, frequentemente conduz a pessoa a uma crise de saúde mental que pode permanecer invisível aos olhos de muitos. O trauma, o estresse e a incerteza vivenciados durante e após a catástrofe podem desencadear uma miríade de problemas mentais, como transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), ansiedade e depressão.
Nesse sentido, perguntamos à Dra. Elisabeth quais seriam os principais desafios para a psique do sobrevivente de uma catástrofe, como a que ocorreu no estado gaúcho. Em resposta, a especialista apontou que “a perda da estrutura que representa o lar, dos mais diversos pertences, incluindo aqueles com valores emocionais, e, especialmente, a perda de entes queridos, resultam em sentimentos intensos de desamparo, tristeza e luto entre os sobreviventes de desastres naturais. Essas experiências assoladoras imprimem cicatrizes emocionais profundas, que somadas à incerteza sobre o futuro e combinadas com as dificuldades inerentes à reconstrução da vida, podem precipitar níveis significativos de ansiedade, depressão e estresse crônico”.
A psicóloga também ressaltou que esse tipo de tragédia pode impactar crianças e jovens de outra forma, considerando que muitos deles tendem a assumir responsabilidades parentais quando os adultos ficam incapacitados. Portanto, é crucial oferecer suporte emocional e psicológico específico para esses grupos durante a recuperação
Na conversa com a Dra. Elisabeth, ela também salientou sua preocupação com o grupo envolvendo grávidas, considerando que estudos têm evidenciado que a exposição materna a um evento traumático durante a gravidez pode provocar consequências capazes de afetar gerações futuras, filhos e até netos. Segundo a psicóloga, a exposição a condições insalubres durante e após a catástrofe pode agravar ainda mais o cenário: “Os traumas e as lesões físicas, a presença de infecções e outras doenças possíveis relacionadas a esse contexto, não apenas comprometem o bem-estar físico, mas também exacerbam o sofrimento psicológico, criando um ciclo vicioso de angústia e desespero. O comprometimento da saúde física, a sensação de perda de controle e a imprevisibilidade do futuro intensificam o sofrimento psicológico dessas pessoas”.
A especialista ressalta ainda outro aspecto desafiador: o convívio em abrigos temporários. “Ali estão reunidas pessoas com as mais diversas histórias de vida, com diferentes bagagens emocionais e comportamentais”, pontua. Já nas primeiras semanas após a tragédia, mulheres e crianças tiveram que lidar com a vulnerabilidade de estar alojadas em abrigos mistos e administrar o medo e a tensão de passar por importunação sexual e até mesmo de ser violentadas. Dentro desse contexto,também acabam sendo expostos casos de violência sexual intradomiciliar, que já ocorriam anteriormente e acabam sendo repetidos nos abrigos. Segundo informações da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, até o início do mês de maio, oito pessoas haviam sido presas por suspeita de estupro nos abrigos de Viamão, Canoas e Porto Alegre.
Lamentavelmente, fica evidente que a “luta” pela sobrevivência em casos de desastres naturais não termina com o resgate. Cada dia pós-tragédia é marcado por uma batalha constante para resistir aos mais variados atos de violência e estigmatização, para então retomar a dignidade, a estabilidade emocional e reconstruir a vida. A psicóloga ressalta, também, que a falta de suporte adequado e a estigmatização em torno das questões de saúde mental podem agravar ainda mais a situação, levando muitos a ocultar sua dor e a sofrer em silêncio.
Tentar encobrir um sofrimento intenso decorrente de estresse e trauma de sobreviver a um desastre natural pode acarretar uma série de efeitos colaterais profundos e prejudiciais à saúde mental e física dos indivíduos afetados. Essas dificuldades podem aparecer a longo prazo e se estender para outras pessoas da família ou da comunidade. Listamos os principais sintomas adversos observados em adultos, crianças e adolescentes (nos quadros ao lado).
Diante disso, é fundamental promover a conscientização sobre a importância da saúde mental em situações de desastre, desmistificando preconceitos e incentivando a busca por ajuda profissional. A construção de uma rede de apoio sólida e a capacitação de profissionais de saúde para lidar com essas emergências são passos essenciais para garantir que os sobreviventes recebam o cuidado e a atenção necessários.
A Dra. Elisabeth conclui pontuando que “o caminho para a recuperação é longo e desafiador, mas, com uma abordagem compassiva e criteriosa, é possível ajudar os sobreviventes a reconstruir a vida e restaurar a saúde mental. Reconhecer e enfrentar essa crise oculta é uma responsabilidade coletiva, e nossa atuação pode fazer a diferença entre o desespero e a esperança renovada”.
UM OLHAR PARA O FUTURO
A tragédia que atingiu o Rio Grande do Sul sublinha a importância de um olhar assertivo para o futuro. Enchentes e outros tipos de desastres naturais têm sido recorrentes e não causam apenas danos imediatos, mas também representam uma série de prejuízos (a médio e longo prazos) à saúde física e emocional. Não podemos reconstruir utilizando os mesmos moldes anteriores. É imprescindível reavaliar os cenários brasileiros e redimensionar os riscos, abandonando políticas e posturas reativas aos desastres em favor de ações estratégicas preventivas e prospectivas para garantir uma resposta rápida e eficiente, especialmente em situações emergenciais.
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