sexta-feira, 06 dezembro

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Relatório Global de Nutrição revela que pessoas obesas estão desnutridas por escolhas ruins na alimentação
Bruna Genaro
Comer, comer e comer. Será mesmo que uma boa nutrição se resume a comer sem se importar com o quê? O dito popular que diz “você é aquilo que come” parece fazer cada vez mais sentido. Pelo menos é o que aponta o Relatório Global de Nutrição deste ano: uma em cada três pessoas sofre com a desnutrição. Mas como assim? Em um mundo em que você pode até pedir comida pelo celular?!
O que também surpreende é que as pessoas obesas estejam entre as desnutridas. É exatamente isso que você acabou de ler: Obesidade não é sinônimo de nutrição – ou “extra nutrição”. Pessoas obesas estão desnutridas, apesar do acesso à grande quantidade de comida. Estão desnutridas porque comem mal, acumulando açúcar, sal e colesterol no sangue. “Infelizmente, ainda é muito comum associar a presença de obesidade ao bom estado nutricional. Assim, existe uma tendência ao consumo de alimentos mais energeticamente ricos, independentemente do valor nutricional deles. Isso ocorre especialmente entre indivíduos com pouca ou nenhuma informação”, destaca Maria Edna de Melo, doutora em Endocrinologia pela USP e diretora da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso).
A nutricionista Patrícia Lessa, especialista em Nutrição para Crianças e Adolescentes, acrescenta que as carências nutricionais não estão relacionadas exclusivamente à fome e à má nutrição. O desequilíbrio entre o que é necessário e o que é consumido leva ao acúmulo de gordura por meio do abuso de alimentos ricos em açúcar, sal ou gorduras saturadas.
Estar devidamente nutrido não pode ser definido apenas pela aparência, mas, sim, pelos hábitos cultivados. “Nutrir é oferecer ao organismo tudo o que ele precisa para seu bom funcionamento. A falta de um ou mais dos nutrientes necessários compromete o que chamamos de homeostasia (equilíbrio)”, observa o nutricionista Ricardo Vargas.
Além disso, a boa nutrição deve estar associada a uma alimentação regular e adequada “a idade, sexo, atividade física, condições socioeconômica, climática, cultural e religiosa. O guia para alimentação equilibrada é a figura da pirâmide alimentar. O consumo correto das porções desses grupos é a maneira simples de compreender e adquirir hábitos alimentares saudáveis e, consequentemente, melhorar a qualidade de vida”, propõe Patrícia.
Na contramão da boa nutrição está a desnutrição que não está ligada apenas ao Índice de Massa Corporal (IMC). De acordo com especialistas, apesar de medir a corpulência da população, o IMC não é suficiente para classificar pessoas nutridas e desnutridas. “Esse método de avaliação não especifica as massas corporais como, por exemplo, massa muscular ou magra, massa de gordura, ossos e água. Sendo assim, o risco de subestimar ou superestimar o estado nutricional é muito alto e as metas para prevenção, tratamento e manutenção do peso corporal ficam limitadas”, explica Patrícia. “Olhar apenas a aparência física de uma pessoa revela bem pouco do seu estado nutricional”, indica Ricardo Vargas.
Ao contrário do conhecimento popular em que a desnutrição está associada a dietas pobres em calorias ou proteínas, o verdadeiro quadro de má nutrição é desenvolvido pela ingestão insuficiente de nutrientes essenciais. “Uma alimentação desequilibrada em macro e micronutrientes favorece o surgimento de sinais e sintomas específicos da má nutrição, como: apatia, perda de massa muscular, aumento das taxas de gordura no sangue, engrossamento da pele, queda capilar, enfraquecimento de unhas, ineficiência do sistema imunológico, carências nutricionais”, esclarece Patrícia.
Outros sintomas relacionados à desnutrição, segundo Vargas, são: cansaço no fim do dia, sonolência diurna, insônia, irritabilidade, falta de concentração e de memorização, dificuldade para perder peso e ganho de peso repentino.
A obesidade pode ser definida como um estado inflamatório, logo, quanto maior for o nível de gordura, maior será o processo inflamatório no corpo, segundo os especialistas. É classificada como condição de obesidade a massa adiposa que ultrapassa 20% do peso total do indivíduo. “A obesidade, na sua maioria, é uma doença genética. As pessoas herdam os maus hábitos. Crianças reproduzem o comportamento dos adultos. Se essa cadeia não for quebrada, teremos uma geração mais obesa do que hoje. Até os sete anos, as crianças estão formando seu caráter, e nesse período elas aprendem por um princípio chamado ‘macaco vê, macaco faz’, ou seja, reproduzem o que veem. Por isso a importância de a mudança partir do adulto”, orienta Vargas.
Uma alimentação pobre em nutrientes, responsável pela desnutrição, também está ligada ao aumento de gordura corporal e dificuldade em perder peso. Segundo o nutricionista, uma alimentação inadequada resulta em fome em intervalos mais curtos, “e toda vez que comemos, o pâncreas libera insulina que favorece a formação dos depósitos de gordura”.
Sendo assim, acrescenta Patrícia, “sabe-se que o aumento da glicose no sangue (hiperglicemia) favorece o aumento no acúmulo de gordura abdominal, podendo desencadear a diabetes tipo 2, doença não transmissível que vem se tornando um problema de saúde pública”.
Transição nutricional
Junto com o desenvolvimento do Brasil e, consequentemente, com a maior distribuição de renda e o aumento da classe média ocorrido nos últimos anos, a população passou a consumir mais produtos, incluindo os alimentos industrializados, resultando na chamada “transição nutricional”.
Durante a industrialização, além das perdas de nutrientes, outro problema é o aumento da densidade energética do alimento. Hoje temos muitas calorias embutidas em pequenas porções de alimentos. Por exemplo, em 100 g de arroz branco cozido encontram-se 129 kcal. Já em 100 g de biscoito recheado há 456 kcal, porção equivalente a apenas 10 biscoitos”, destaca o nutricionista Ricardo Vargas.
A transição nutricional trouxe uma série de malefícios à saúde, graças às preparações industrializadas dos alimentos. “Produtos com excesso de sal, seja para conservação ou acentuação de sabor nos alimentos, preparações com quantidades enormes de açúcares simples, carboidratos refinados, xaropes de milho, gorduras trans, são ‘excelentes’ aliados para o acúmulo de gordura corporal e enfraquecem o metabolismo e a absorção de vários micronutrientes essenciais ao adequado funcionamento do organismo”, explica a nutricionista Patrícia Lessa.
Mas essa transição se deu por causa da carência de alimentos saudáveis ou por hábitos ruins? Patrícia acredita que haja uma relação entre os dois, já que os fatores ambientais e comportamentais podem favorecer a obesidade e a má nutrição. Já Vargas enfatiza a necessidade de voltar a comer os alimentos naturais e deixar de lado os industrializados, tendo em vista que muitos desses alimentos são classificados como saudáveis, mas não são.
Para reverter o quadro, primeiro é preciso reconhecer a necessidade de mudar. A mudança de hábitos inadequados deve estar relacionada à exclusão dos “fatores de risco para a obesidade, incrementando medidas saudáveis ao estilo de vida, como: alimentação equilibrada, em que frutas, vegetais, cereais integrais são incentivados na dieta (aumento das fibras alimentares); prática regular de exercícios físicos; e respeito para com as horas de sono”, adverte Patrícia.
Para a mudança eficaz da população é necessária uma nova transição nutricional, mas, dessa vez, indo dos alimentos industrializados para os alimentos in natura. “Toda mudança deve ser gradativa. Minha sugestão é que se comece a incluir alimentos saudáveis antes da retirada dos alimentos nocivos à saúde. Temos que aumentar a oferta para depois promover a retirada dos alimentos nocivos evitando, assim, a falta de opções de um cardápio monótono”, sugere Vargas.
 
[box-destaque cor-box=”#9fd5d5″]Deficiências da obesidade desnutrida
Nutrientes essenciais para o bom funcionamento do organismo, mas deficientes em crianças e adultos com o quadro de obesidade desnutrida.[/box-destaque]
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Obesidade desnutrida na infância
A obesidade desnutrida já pode dar seus primeiros sinais na infância e suas consequências não são nada agradáveis. A desnutrição, apesar do sobrepeso, pode causar atraso no desenvolvimento corporal e cognitivo que está diretamente relacionado à oferta de nutrientes. “Deficiências de ferro, magnésio, zinco, vitamina C, vitamina D, vitamina B12 e ácido fólico podem comprometer o aprendizado e a formação da memória em longo prazo”, destaca Vargas.
Ainda segundo o nutricionista, uma pessoa obesa tem a tendência de ingerir mais carboidrato e pouca proteína. Estas são essenciais para a produção de hormônios, entre eles o GH, conhecido como hormônio do crescimento. “Esse hormônio cumpre papel importante no crescimento em estatura, desenvolvimento dos órgãos, controle da formação de depósitos de gordura, entre outras funções na infância”, esclarece.
Os três primeiros anos de vida são decisivos para uma boa saúde, ainda na infância e também na vida adulta. Nesse período se formarão e consolidarão as células adiposas (de gordura). “Já é comum crianças com idade inferior a sete anos com distúrbios metabólicos, como colesterol alto, triglicerídes elevado e prejuízos psicossociais, como depressão, baixa autoestima, dificuldade de aprendizagem e locomoção, entre outros. Se as alterações metabólicas não forem tratadas, podem resultar no desenvolvimento de várias doenças degenerativas crônicas, como aterosclerose, doença coronariana, hipertensão arterial e diabetes melito”, alerta a nutricionista Patrícia.
E não adianta pensar que uma superalimentação na infância seja a solução para os problemas. Ao contrário, muito mais vale uma alimentação regrada com valor nutricional agregado. “O sobrepeso precede o quadro de obesidade e é caracterizado pelo consumo excessivo de calorias em relação ao gasto diário. Existe uma infinidade de produtos alimentícios altamente energéticos, porém, compostos de calorias vazias. Observa-se nessas crianças o consumo regular desses tipos de alimentos e uma dieta pobre em frutas e verduras”, diz Patrícia.
De acordo com os dados mais recentes da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF-IBGE), em quatro décadas o déficit de altura em crianças de 5 a 9 anos caiu (na década de 1970, as crianças não desenvolviam a altura correta por causa da desnutrição infantil).
No entanto, ocorreu um aumento explosivo, principalmente nas últimas duas décadas, do excesso de peso corporal e obesidade nessa mesma faixa etária. Os índices de obesidade quadruplicaram entre meninos (de 4,1% em 1989, para 16,6% em 2009) e meninas (de 2,4% em 1989 para 11,8% em 2009).
Antes, acreditava-se que uma criança gordinha fosse sinônimo de saúde. Ainda hoje, muitas pessoas acreditam nisso. Para desmistificar o assunto, o Relatório Global de Nutrição apresenta uma nova definição sobre o termo “desnutrição”, mostrando que é totalmente possível estar acima do peso e subnutrido.
Para reverter a situação ainda na infância é preciso grande empenho desde os pais até o governo. “A família, a escola e o governo devem se comprometer em educar e adotar hábitos alimentares e estilo de vida favoráveis ao bom desenvolvimento infantil, seja nutricional, fisiológico, emocional e social”, diz Patrícia.
Na prática, os hábitos alimentares das crianças devem ser mudados aos poucos. “Crianças não devem fazer dietas restritivas em calorias. É preciso mudar os hábitos alimentares gradualmente. O peso vai se ajustando conforme as crianças crescem. As carências nutricionais muitas vezes precisam ser corrigidas com o auxílio de suplementos”, defende Vargas.
[box-destaque cor-box=”#9fd5d5″]Excesso de peso e obesidade no mundo
Os índices crescentes de obesidade têm preocupado as autoridades de saúde em vários países.[/box-destaque]
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O alto preço da obesidade
Atualmente, existem mais pessoas que estão com excesso de peso do que abaixo do peso. É isso que mostra um estudo desenvolvido pela consultoria McKinsey. Cerca de 2,1 bilhões de pessoas no mundo sofrem com o sobrepeso, das quais 670 milhões estão em quadro de obesidade. O número significa que 30% da população mundial está com mais peso do que o normal.
E a estimativa não é das melhores. A consultoria acredita que o percentual subirá para a metade dos habitantes da Terra até 2030. “Os países com crescimento acelerado de obesidade precisam propor medidas de prevenção e combate às situações de risco por meio da captação de recursos governamentais e de doadores, alternativas baratas, práticas e criativas, capacitação de profissionais para instrução nutricional da população e integração de políticas de prevenção e controle das doenças ocasionadas pelo sobrepeso e a obesidade”, sugere Patrícia Lessa.
Educação nutricional nas escolas, aumento dos impostos sobre alimentos processados, restrição das campanhas de marketing com esses alimentos e tantas outras medidas poderiam ser adotadas para a redução da obesidade.
O Relatório Global demonstrou um cálculo em que cada 1 dólar gasto em programas de incentivo à nutrição resulta em 16 dólares em benefícios para a população. “Precisamos entender o que o Relatório Global concluiu sobre esse aspecto. Quanto mais recursos financeiros forem despendidos com ações de educação em saúde, saneamento básico, higiene e agricultura, melhor será o crescimento econômico do país em questão”, explica Patrícia.
Além disso, a maioria das campanhas tem como foco os problemas causados pela obesidade, mas não as vantagens da mudança no estilo de vida. “Deveria haver um esforço por parte das autoridades em mostrar as vantagens de se consumir alimentos integrais, os benefícios das mais variadas frutas, verduras e hortaliças. Os alimentos têm propriedades preventivas e curativas e a população precisa saber disso”, diz Vargas.
A gravidade do problema com a obesidade é tão grande que se equipara ao tabagismo, à violência armada e ao terrorismo, segundo a McKinsey. Suas consequências podem ser vistas em números afetando a economia do país, desde a saúde à queda de produtividade e ao aumento do absentismo trabalhista.
O custo anual da obesidade para os Estados Unidos chega a 153 milhões de dólares, de acordo com a consultoria Gallup. Na Europa, o valor está perto dos 160 bilhões, segundo estudo do Bank of America-Merrill Lynch. Os dados são a prova de que a obesidade custa muito caro aos cofres públicos. A pergunta é: “Será que realmente há interesse em mudar? Quanto chega aos cofres públicos em impostos derivados da venda de produtos processados e ultraprocessados, medicamentos, consultas médicas e muitos outros gastos que a obesidade gera para um indivíduo? O gasto do governo é infinitamente menor do que a arrecadação”, reflete Vargas.
[box-destaque cor-box=”#9fd5d5″]Panorama da obesidade no Brasil[/box-destaque]

4-vsDados: Vigitel 2014 (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico)

Bruna Genaro é jornalista

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