O tempo passa lá fora e, devido ao movimento do planeta de girar em torno de si mesmo, movimento esse chamado de “rotação da Terra”, o dia como conhecemos acontece, marcado em nosso relógio por um período de 24 horas, sendo 12 horas para a parte clara (dia) e 12 horas para a parte escura (noite). Há muito se entendia que os seres vivos – microrganismos, plantas, animais e humanos – viviam de acordo com esse período e aprenderam a se adaptar ao dia e à noite. No entanto, não foi apenas uma adaptação, pois foi descoberto que o tempo também passa dentro de nós e é chamado de “relógio biológico”.
No século 18, especificamente em 1729, o astrônomo francês Jean Jacques d’Ortous de Mairan, apresentou o primeiro relato científico da ritmicidade endógena, que vem de dentro do organismo. De Mairan observou que a planta Mimosa, de nome popular “dormideira”, fechava suas folhas à noite e voltava a abri-las quando o dia clareava. Ele resolveu colocar a planta em um local fechado sem a presença da luz natural e, para sua surpresa, a planta continuava com o movimento de abrir e fechar as folhas em um ritmo próximo de 24 horas, mesmo em condições de escuro constante. Assim nascia a cronobiologia, que ao longo dos séculos foi sendo estabelecida. Do grego khro-nos, “tempo”, a cronobiologia é uma área das ciências biológicas que estuda os ritmos biológicos, ou seja, a organização temporal dos seres vivos.
CICLO CIRCADIANO
Nosso corpo trabalha de acordo com ciclos de claro-escuro, ou seja, dia e noite, mecanismo marcado por funcionar em sono-vigília. Esse funcionamento em relação ao dia de 24 horas é nomeado de ciclo circadiano (circa no latim significa “cerca de”, e diem, “dia), e é o mais conhecido por ser referente ao dia solar.
Pela manhã a luz natural sincroniza nosso relógio mestre, o núcleo supraquiasmático (NSQ), localizado no cérebro.
Em nossos olhos estão localizadas células chamadas “fotorreceptoras”, que possuem a função de captar a luz e enviá-la ao NSQ, informando ao cérebro que é dia.
Daí começa a produção do cortisol, conhecido como hormônio do estresse, que, na verdade, é produzido de forma fisiológica para nos ajudar a enfrentar os desafios do dia.
Na ausência de luz, ao entardecer e à noite, o NSQ se comunica com outra pequena estrutura chamada glândula pineal, também presente no cérebro.
Ao amanhecer, a captação de luz faz a pineal reduzir a produção de melatonina que, consequentemente, tem seus níveis reduzidos na corrente sanguínea, recomeçando o ciclo
A luz é uma pista tão importante na sincronização do relógio mestre, que pessoas com deficiência visual frequentemente apresentam o “distúrbio do ritmo sono-vigília não 24 horas”. Como resultado, o ritmo circadiano de sono e vigília geralmente atrasa a cada dia, resultando em sintomas como dificuldade para dormir, sonolência excessiva ou ambos. Essa condição depois de diagnosticada é tratada com a associação entre exposição à luz pela manhã e administração de melatonina à noite.
O estabelecimento de rotina também é um aliado importante para sincronizar os relógios do corpo. Além da luz, existem outras pistas externas que ajudam a sincronizar o relógio mestre e os relógios periféricos, como alimentação, atividade física e interação social, que funcionam como indicadores de tempo para os órgãos do corpo. Os relógios biológicos que funcionam de acordo com o ciclo circadiano fazem com que todas as funções do corpo tenham literalmente um melhor horário para acontecer. Dados os padrões rítmicos de funcionamento do organismo, existe uma área chamada cronofarmacologia, na qual estudos são feitos para se determinar qual o melhor horário do dia para se tomar um medicamento, otimizando, assim, seu efeito.
CRONOTIPO
O cronotipo é um traço comportamental humano influenciado também pela genética que possui impacto nas características fisiológicas e psicológicas da pessoa. Os humanos apresentam diferenças individuais no tempo de desempenho das atividades, assim como para sono, vigília, desempenho mental e físico. Isso ocorre devido à preferência circadiana individual, tornando possível definir o cronotipo.
entamdiferenças individuais no tempo de desempenho das atividades, assim como para sono, vigília, desempenho mental e físico. Isso ocorre devido à preferência circadiana individual, tornando possível definir o cronotipo.
Os cronotipos são divididos em traços matutinos, vespertinos e intermediários, avaliados com a finalidade de se identificar a resposta da interação do relógio biológico do indivíduo com os horários e o ambiente externo.
O cronotipo matutino caracteriza os indivíduos que dormem e acordam cedo; são mais ativos durante a primeira parte do dia, podendo ser divididos em matutinos extremos e moderados.
O cronotipo vespertino caracteriza os mais ativos durante a última parte do dia e à noite; acordam e dormem mais tarde, e o desempenho nas atividades e estado de alerta alcança o melhor momento no período da tarde ou à noite. Os vespertinos também podem ser divididos em extremos e moderados.
O intermediário se encontra na posição entre os cronotipos matutino e vespertino, ditos indiferentes, pois não possuem horários preferenciais para dormir ou para acordar, e são flexíveis quanto aos ajustes de horários impostos pela rotina diária.
Ao traçar o percurso das fases da vida dos seres humanos, percebe-se que vão ocorrendo modificações no cronotipo, ou seja, o período preferencial do dia para se realizar as atividades. Os bebês costumam ser matutinos; os adolescentes, vespertinos; os adultos tendem para intermediários; e os idosos voltam a ser matutinos. Não temos o mesmo cronotipo a vida toda. Mas, dos 21 aos 65 anos, o cronotipo tende a ser o mesmo. A questão é: qualquer que seja seu cronotipo, você precisa entrar no ritmo correto o mais depressa possível.
CRONONUTRIÇÃO
A crononutrição surgiu como uma nova área de pesquisa que estuda o impacto do momento da alimentação no bem-estar do organismo. Progressos recentes no campo dos ritmos circadianos levaram à ideia de que a hora do dia em que o alimento é ingerido afeta o peso e a composição corporal, a regulação da glicose, o equilíbrio da composição lipídica/gordura, a microbiota intestinal, a função cardíaca, a inflamação, o sono e a saúde geral. De fato, pesquisas na área da crononutrição têm sido feitas para prevenir e controlar doenças cardiometabólicas, como obesidade, hipertensão arterial e diabetes mellitus.
O médico indiano Suhas Kshirsagar, autor do livro Mude Seus Horários, Mude Sua Vida, afirma aos pacientes que relatam dificuldade em perder peso: “Não é você, são seus horários.” Cronobiologistas afirmam que “o quando comemos é tão importante quanto o que comemos”. O ritmo circadiano prepara para a alimentação durante a fase ativa, orientando o corpo para a alimentação diurna. O esvaziamento gástrico e as taxas de motilidade gastrointestinal atingem o pico pela manhã. O armazenamento de substrato energético em tecidos apropriados acontece durante o dia. A sensibilidade à insulina – hormônio que permite a entrada da glicose nas células para ser convertida em energia – tem um pico diário durante a fase ativa.
O apetite para a maioria dos alimentos é controlado pelo relógio biológico e é mais baixo pela manhã, talvez para permitir um sono consolidado, apesar da diminuição da disponibilidade de energia. A termogênese – processo de produção de calor no organismo – induzida pela dieta também tem um ritmo circadiano que atinge o pico pela manhã. Já se alimentar no período noturno, principalmente com grandes quantidades e próximo ao horário de dormir, faz com que haja disfunções no organismo, que, nesse momento, está preparando os sistemas corporais para a restauração e depuração de toxinas, e não para realizar digestão.
De fato, pesquisas têm mostrado que pessoas que fazem refeições mais tarde em comparação com as que fazem as refeições mais cedo, ganham mais calorias e emagrecem menos. Outros estudos mostraram que consumir mais do que a ingestão diária de energia à noite está associado a um risco aumentado de sobrepeso e obesidade, enquanto consumir mais do que a ingestão diária de calorias no café da manhã ou no almoço está inversamente associado a esse risco.
Seguindo aquele famoso ditado “tome café da manhã como um rei, almoce como um príncipe e jante como um mendigo”, respeitaremos nosso relógio biológico.
INTERRUPÇÃO DO RITMO CIRCADIANO
A interrupção do ritmo circadiano é caracterizada principalmente por alterações no sono, como dormir pouco, insônia, ou trabalhos noturnos, fatores que são a base para desordens metabólicas como diabetes mellitus, hipertensão arterial, doenças cardiovasculares, obesidade, doenças neurodegenerativas como a doença de Alzheimer, câncer e transtornos mentais, como depressão, esquizofrenia, bipolaridade e ansiedade generalizada.
Para termos uma noção, trabalhadores noturnos apresentam taxas aumentadas de vários tipos de câncer, incidência elevada de distúrbios cardiovasculares e metabólicos, como diabetes e obesidade, bem como prevalência aumentada de distúrbios comportamentais e psiquiátricos. Na sociedade moderna, a oferta constante e abundante de estímulos perturbadores, como iluminação artificial, sistemas de aquecimento e arrefecimento de ambientes, sedentarismo, disponibilidade de alimentos industrializados e outros, desafia a manutenção do equilíbrio do sistema de temporização endógeno relacionado às funções vitais circadianas programadas.
Comer em horários irregulares também provoca esse desalinhamento do ritmo biológico circadiano, bem como a inversão de horários para a realização de tarefas, principalmente quando não se sabe o cronotipo. Para evitar isso, basta atentar aos horários dos ritmos do corpo para acordar, se alimentar, trabalhar, exercitar, ter lazer e dormir. Tudo isso ajuda a manter o relógio biológico alinhado com a saúde.
JET LAG SOCIAL
Desde a industrialização, os seres humanos ganharam a capacidade de regular as condições ambientais e, posteriormente, alterar os padrões temporais de comportamento. Para fazer face às exigências desse aspecto moderno da sociedade, são agora comuns os horários de trabalho variados, com cerca de 20% da mão-de-obra europeia a trabalhar em turnos noturnos. Isso indica claramente que uma grande parte da população experimenta desalinhamento regular de seu comportamento com o dia solar.
Outra causa comum de desalinhamento circadiano abrupto é o jet lag, a viagem rápida entre fusos horários. Embora essa experiência seja um fenômeno raro e transitório para a maioria das pessoas, ela afeta um número substancial de indivíduos e, em alguns casos, por exemplo, em tripulação de avião, pode ser um evento regular.
Um fenômeno relacionado e comum na sociedade é a mudança semanal entre horários de sono amplamente diferentes no trabalho e nos dias livres. Isso foi denominado “jet lag social” e está associado ao ganho de peso. Na sociedade moderna, inúmeras ocupações e a alta prevalência de insônia levam a estilos de vida que não estão alinhados com o relógio circadiano. Sabemos que isso influencia a ingestão alimentar, o metabolismo da glicose, a regulação do peso e a obesidade. Se você dorme até mais tarde no fim de semana e se levanta cedo nos dias úteis, seus horários de sono e seus horários de trabalho estão fora de sincronia. Os pesquisadores chamam esse fenômeno de “jet lag social”, porque reproduz no organismo o efeito de atravessar fusos horários.
Em essência, quando fica acordado até meia-noite no fim de semana e tenta se reajustar para estar no trabalho às 9h da segunda-feira, é como se você voasse 1.500 quilômetros na noite de sexta-feira e voltasse para casa na tarde de domingo. Viajantes experientes sabem o que isso faz com o corpo. O jet lag causa privação de sono e confusão mental. Também provoca problemas digestivos. Às vezes, os viajantes têm dor de estômago, prisão de ventre ou apenas se sentem indispostos e inchados. As pessoas que mudam de fuso horário constantemente também se cansam com mais facilidade, são mais suscetíveis a gripes e resfriados e mais sensíveis a estressores emocionais. Esses viajantes sabem que, quando voltam para casa, o corpo se reajusta. Muitos utilizam a melatonina, que foi aprovada principalmente para melhorar esses efeitos negativos do jet lag.
Se vivemos em jet lag social todo fim de semana, o corpo nunca tem a oportunidade de se normalizar. O conceito de jet lag social e seus efeitos sobre o organismo são uma nova área de pesquisa, mas os estudos já mostraram que eles contribuem para as doenças metabólicas. Indivíduos com índice de massa corporal acima do normal correm risco mais alto de desenvolver obesidade e diabetes tipo 2, quando sofrem jet lag social durante vários anos. Também tendem a ingerir cafeína e álcool para controlar o estado de vigília e o estresse. Cochilar e ficar na cama até tarde nos fins de semana, por exemplo, não oferecem o repouso de qualidade que se pode obter dormindo quando o corpo espera dormir. Além disso, o ritmo circadiano do dia estabelecido pelo NSQ, o relógio mestre, começa quando acordamos e vemos a luz do dia.
HORÁRIOS DO CORPO
A exposição à luz solar no período da manhã é essencial para a regulação do relógio biológico central que, ao cair da noite, saberá quando iniciar a produção de melatonina, preparando o corpo para dormir. O sistema circadiano está preparado para a alimentação durante o período diurno, por isso o desjejum pela manhã é a maior refeição em quantidade, seguida pelo almoço e diminuída no jantar, que deve anteceder o sono em no máximo três horas, para não sobrecarregar o organismo.
Uma dieta saudável, incluindo frutas e vegetais e consumo mínimo de água de dois litros ao dia, é importante para a manutenção da produção da melatonina. É importante ingerir alimentos que contenham triptofano no início da manhã, antes das 9h, e à noite, entre 18h e 19h, pois, pela manhã haverá produção de serotonina, e à noite haverá a produção da melatonina. Sendo que a melatonina é produzida a partir da serotonina, é o relógio biológico alinhado ao ciclo circadiano que sabe quando produzir cada uma.
Alguns alimentos que contêm triptofano são banana, amendoim, aveia, arroz integral e espinafre. Lembrando que a ingestão alimentar à noite deve ser leve e, no máximo, até três horas antes de dormir, pois, nesse período, o metabolismo corporal é mais baixo. Atividades físicas podem ser feitas juntamente com a exposição à luz solar pela manhã ou ao fim da tarde. Também é melhor evitar muito esforço físico próximo ao horário de dormir.
Horários de alerta cerebral para estudo incluem entre 10 e 11 horas da manhã e entre 15 e 16 horas da tarde. Até mesmo para o ato sexual há um melhor período, e não é pela noite, mas, sim, pela manhã, ao acordar, devido aos maiores níveis hormonais sexuais, tanto nos homens quanto nas mulheres, e à produção de serotonina, neurotransmissor também envolvido na interação social.
A ingestão de cafeína após o horário de almoço não deve acontecer, pois atrapalha a entrada no sono profundo. Já a exposição às luzes artificiais deve ser diminuída, principalmente após o pôr do sol. Nada de tablets, computadores, celulares e afins, pois podem suprimir a produção da melatonina.
O ideal para o sono ser iniciado é entre 21 e 22 horas, independentemente do cronotipo. Esse sono ajuda a depurar toxinas acumuladas no dia, fortalece o sistema imune e consolida a memória.
Ter uma rotina é algo essencial para o corpo, e isso inclui horários para acordar, se alimentar, trabalhar, exercitar, ter lazer e dormir, o que ajuda a manter o relógio biológico alinhado ao ciclo circadiano, mantendo, assim, a saúde.
Rosiene Gomes de Freitas
Mestre em Biotecnologia com ênfase em Neurobiologia
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