sexta-feira, 19 abril

Faces do preconceito

Texto por: Priscila Oliveira 11 fevereiro, 2021 Sem comentários

“Racismo é um sistema de estruturação de oportunidades e atribuição de valor com base na interpretação social de como se parece. Isso prejudica injustamente alguns indivíduos e comunidades, beneficia injustamente outros indivíduos e comunidades e esgota a força de toda a sociedade por meio do desperdício de recursos humanos.”

O médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909), prolífico em áreas de estudo e atuação, é lembrado na atualidade por suas ideias a respeito da criminologia, área do direito que flerta com a psicologia. Ele é o principal responsável por enxergar na etnia de detentos fatores que supostamente os haviam tornado propícios a uma vida de criminalidade. Por meio de características físicas, Lombroso julgava ser capaz de traçar o perfil de pessoas que poderiam se tornar delinquentes.

Partindo de uma perspectiva evolucionista, Lombroso defendia que o corpo dava sinais de incapacidade para a vida em comunidade em alguns indivíduos. Fatores como cor, tamanho da cabeça e espessura dos lábios eram alguns dos traços que indicavam o nível de desenvolvimento das pessoas na escala evolutiva. Dessa forma, selvagens e civilizados poderiam ser classificados por meio dos métodos bioantropológicos por ele desenvolvidos.¹

Conceito criado pelo antropólogo inglês Francis Galton (1822-1911), a eugenia é a tentativa de direcionar a “evolução” humana e “purificar” os traços étnicos. O filósofo grego Platão já falava sobre esse suposto “aperfeiçoamento racial” por meio de processos seletivos. O Brasil chegou a ter a Sociedade Eugênica de São Paulo, criada em 1918. O fato é que se trata de uma teoria altamente polêmica devido às suas implicações éticas.

Ideias semelhantes às de Lombroso também tiveram espaço na área de saúde. Não foram poucos os especialistas nessa área que aderiram a movimentos eugenistas. Além disso, ideais de “limpeza étnica” deram também base à proibição legal do casamento interracial nos Estados Unidos da América e à segregação do apartheid na África do Sul, mas desaguaram em consequências ainda mais bárbaras, como o assassinato em massa promovido pelos nazistas, em que milhões de vidas foram ceifadas pelo ódio e suposto respaldo científico. Atrocidades que mancham as páginas da história foram realizadas em nome do processo evolutivo, em que classes indignas da existência deixariam de ser um peso para as demais.

DIFERENÇAS ENTRE AS ETNIAS

Para Lombroso, Hitler e os demais eugenistas, a observação da realidade resultava na defesa da supremacia racial. Afinal, boa saúde e formação intelectual pareciam ser prevalentes em determinados grupos étnicos, em detrimento de outros que amargam posições desconfortáveis.

Dados nesse sentido podem ser encontrados ainda hoje. No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, “o risco de morte por tuberculose é 1,9 vez maior entre as pessoas pardas e 2,5 vezes maior entre as pessoas pretas, quando comparado ao risco entre as pessoas brancas. As grávidas negras morrem mais de causas maternas (como a hipertensão própria da gravidez) do que as brancas. As crianças negras morrem mais por doenças infecciosas e por desnutrição e, nas faixas etárias mais jovens, os negros têm um índice de mortalidade superior ao dos brancos”.² 

A maior parte das enfermidades surge de fatores econômicos e ambientais, como a falta de acesso à saúde preventiva e exposição a condições de vida insalubres. Assim, a condição social da esmagadora maioria da população negra acaba sendo a causa de alguns de seus mais graves problemas.3

Os pesquisadores David Williams e Naomi Priest observaram que as “desigualdades étnico- raciais em saúde têm sido vistas historicamente como decorrentes de fatores genéticos e, mais recentemente, de diferenças culturais entre grupos”.4 Ainda de acordo com eles, “nos últimos anos, o papel do racismo como determinante desses padrões de desigualdades étnico-raciais em saúde vem sendo reconhecido de forma crescente na literatura empírica sobre saúde”.

Um desses números pode ser encontrado nos registros de 2014 da hanseníase no Brasil, que confirmam a íntima relação entre etnia, qualidade de vida e saúde. Essa doença, adquirida em locais com condições precárias de higiene, fez entre os negros dois terços dos 31.064 casos registrados.5 Esses impactos também foram sentidos no coronavírus, que atingiu com força a população negra no Brasil. Em reportagem para a revista Época, Maria Tereza Santos observa, com base em dados da Prefeitura de São Paulo e do Observatório Covid-19, que pretos têm um risco 62% maior de falecer pelo Sars-CoV-2 na cidade.6

Nos Estados Unidos, a situação não é diferente. De acordo com Camara Phyllis, ex-presidente da Associação Americana de Saúde Pública (APHA), o “racismo é um sistema de estruturação de oportunidades e atribuição de valor com base na interpretação social de como se parece. Isso prejudica injustamente alguns indivíduos e comunidades, beneficia injustamente outros indivíduos e comunidades e esgota a força de toda a sociedade por meio do desperdício de recursos humanos”.7

Um exemplo que fortalece a visão de Phyllis é a pesquisa de Lauren Smith, que comprovou um desequilíbrio entre o investimento em políticas públicas de saúde nos Estados Unidos. Publicado na revista médica Hospital Pediatrics em 2006, o texto mostra que, apesar de muito popular, a anemia falciforme não tem a mesma ênfase que as enfermidades menos recorrentes. A razão para isso, explica Smith, está em quem são os pacientes acometidos pelas doenças.

“Apesar de a anemia falciforme ser quase três vezes mais prevalente do que a fibrose cística nos Estados Unidos, o gasto com os pacientes com fibrose cística, incluindo-se verbas públicas e privadas para pesquisa e tratamento, é quase nove vezes maior do que com pacientes com anemia falciforme”, revela a pesquisadora. “Apesar de ser pouco confortável contemplar isso, precisamos considerar a possibilidade de que, consciente ou inconscientemente, a prevalência da doença falciforme na população negra afete os recursos disponíveis, não apenas para a pesquisa, mas também para o cuidado médico desses pacientes.”8

RACISMO E SEUS IMPACTOS NA SAÚDE

Diferentemente do que é sugerido pelos eugenistas, as diferenças entre brancos e negros, bem como entre as demais etnias, não podem ser explicadas por meio de conclusões científicas evolucionistas temerárias. Para isso, entender as dinâmicas sociais que influenciaram a formação da nossa sociedade é algo determinante. A vulnerabilidade social parece ser uma característica que acompanha a cor da pele.

“Grande parte das causas de doenças e desigualdades em saúde derivam, principalmente, de fatores como condições em que a pessoa nasce; trajetórias familiares e individuais; desigualdades de raça, etnia, sexo e idade; local e condições de vida e moradia; condições de trabalho, emprego e renda; acesso à informação e aos bens e serviços potencialmente disponíveis”,9 explica uma cartilha publicada em 2011 pela extinta Secretaria de Promoção da Igualdade Racial em parceria com o Ministério da Saúde.

Desigualdades que perduram no tempo, portanto, podem ser resultado de questões étnicas históricas.

O economista norte-americano Thomas Sowell entende que os acirramentos étnicos se tornaram parte das culturas devido a uma disposição natural para a hostilidade. Em seu livro Discriminação e Disparidades (Record, 2019), Sowell afirma que “muitas evidências empíricas sugerem que os seres humanos não interagem aleatoriamente – nem tão frequentemente ou intensamente – com todos os outros seres humanos, mas, sim, como subconjuntos selecionados de pessoas parecidas com eles mesmos”.10

EFEITOS DURADOUROS DO CATIVEIRO

A escravidão, comum a todas as grandes civilizações antigas e modernas, é um assunto inquietante no Brasil. Os efeitos deletérios dela na população negra são questionados por muitas pessoas. Com razão, argumentam que os negros não foram os únicos submetidos ao cativeiro na história da humanidade. Por isso, negam que efeitos duradouros do cativeiro possam ter se estendido até os dias atuais. 

Uma resposta a essa corrente de pensamento pode ser encontrada na pesquisa mais recente do jornalista Laurentino Gomes, especializado em história do Brasil. Em seu mais novo livro, Escravidão (Globo Livros, 2019), Gomes entende que há razões suficientes para considerar a escravidão nas Américas, patrocinada pelos europeus contra africanos, a modalidade mais grave, quando comparada às demais formas de servidão registradas.

“Nada foi tão volumoso, organizado, sistemático e prolongado quanto o tráfico negreiro para o Novo Mundo: durou três séculos e meio, promoveu a imigração forçada de milhões de seres humanos, envolveu dois oceanos (Atlântico e Índico), quatro continentes (Europa, África, América e Ásia) e quase todos os países da Europa e reinos africanos, além de árabes e indianos que dele participavam indiretamente. Além disso, redesenhou a demografia e a cultura da América, cujos habitantes originais, os indígenas, foram dizimados e substituídos por negros escravizados.”11

Dois outros critérios servem para confirmar a avaliação do jornalista acerca da gravidade da escravidão em nossa história: o número de pessoas feitas cativas e o tempo durante o qual essa atividade foi realizada. “O Brasil foi o maior território escravagista do hemisfério ocidental por quase três séculos e meio. Recebeu, sozinho, quase cinco milhões de africanos cativos, 40% do total de 12,5 milhões embarcados para a América. Como resultado, é atualmente o segundo país de maior proporção negra ou de origem africana”,12 explica Gomes. Cabe ainda destacar que o Brasil foi a nação que por mais tempo se beneficiou do tráfico negreiro e foi o último país a abolir oficialmente, em 1888, a escravidão no continente.13

Poucas gerações separam cidadãos de hoje de seus ancestrais cativos. Dados os números, parece ser difícil negar a incapacidade de a abolição conter as condições precárias dos antepassados. “Liberdade nunca significou, para os ex-escravos e seus descendentes, oportunidade de mobilidade social ou melhoria de vida. Nunca tiveram acesso a terras, bons empregos, moradias decentes, educação, assistência de saúde e outras oportunidades disponíveis para os brancos. Nunca foram tratados como cidadãos. Os resultados aparecem nas estatísticas a respeito da profunda e perigosa desigualdade social no País”, finaliza o Gomes.14 As consequências de séculos de violência brutal e liberdade reprimida podem ser vistas na saúde fragilizada, uma das heranças de condições de vida precárias dessas pessoas.

CRISTIANISMO E ESCRAVIDÃO

O racismo estendeu seus tentáculos a diversas áreas e superou a rivalidade entre ciência e religião: ambas foram legitimadoras do racismo. Apesar de a Bíblia dizer claramente que Deus criou toda a humanidade a partir de uma matriz (Gn 1:26-28; At 17:26), até mesmo sociedades ditas cristãs adotaram atitudes racistas ao longo da história.

Curiosamente, entretanto, os movimentos pela abolição da escravidão iniciados na Inglaterra eram essencialmente religiosos. Destacam-se entre os líderes o evangelista John Wesley (1703-1791), o político William Wilberforce (1759-1833) e John Newton (1725-1807), ex-traficante de escravos. Os argumentos e a articulação deles enfatizavam a liberdade como um direito divino e natural. Dessa forma, conseguiram pouco a pouco minar as estruturas da escravidão no país, tendência que influenciou o Brasil a paulatinamente decretar leis pela liberdade dos escravos nos anos de 1871, 1879 e 1885, até a derradeira, a Lei Áurea, em 1888.

O impacto do cristianismo contra a discriminação foi decisivo também nos movimentos pelos diretos civis da década de 1960 nos Estados Unidos. O principal rosto e a voz entre os manifestantes, Martin Luther King Jr. (1929-1968), era pastor batista e em seus argumentos não escondia a fé.

Recorrendo à história cristã, King justificou seu envolvimento na liderança dos protestos afirmando em um de seus mais conhecidos discursos que “a igreja não era meramente um termômetro que registrava as ideias e os princípios da opinião pública; ela era um termostato que transformava os costumes da sociedade”.15  

Davi Boechat
Jornalista

Referências:

1. bit.ly/3kpMe75
2. https://bit.ly/3kxiKUJ
3. https://bit.ly/3kzvYQP
4. https://bit.ly/2IG1ujm
5. https://bit.ly/3lBPzBx
6. https://bit.ly/32OqoEl
7. https://bit.ly/32MXhRW
8. https://bit.ly/36Kx7QZ
9. https://bit.ly/3kCa5Rd
10. Thomas Sowell, Discriminação e Disparidades (Record, 2019), p. 65.
11. Laurentino Gomes, Escravidão: Do Primeiro Leilão de Cativos em Portugal Até a Morte de Zumbi dos Palmares (Globo Livros, 2019), p. 26.
12. Ibid., p. 24.
13. Ibid., p. 73.
14. Ibid., p. 31. 15. Martin Luther King Jr., citado por John Piper em O Racismo, a Cruz e o Cristão (Vida Nova, 2012), p. 27.

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